A primeira coisa que me impactou ao ter contato com a arte abstrata foi o universo de possibilidades que se abriu em minha cabeça do que seria um fazer artístico.
Eu desenhava, mesmo sem habilidade nenhuma ou entendimento. Eu simplesmente gostava de pegar o lápis e desenhar as coisas na minha frente, os desenhos da TV que eu assistia, as paisagens e coisas que vinham a minha cabeça ou até eu mesmo, me vendo através do espelho. Nada disso ficava bonito, com certeza, mas eu amava fazer, amava ficar desenhando.
O que dali eu compreendia era que tinha que tentar desenhar as coisas que possuíam formas e sentidos diretos, coisas que eu consigo nomear, que faz parte de um universo construído, representado, com sujeito e predicado, com objeto e significado, com aquilo que pode ser tocado ou imaginado e colocado dentro de uma narrativa histórica.
Desenhar um Goku Supersayajin fazia muito mais sentido do que apenas rabiscar várias linhas ou círculos numa folha de papel.
Este é o poder da Arte Figurativa, ela expressa uma ideia mais certeira, mais direta, e, por mais que tenha seus requintes de mistério, sua profundidade com coisas que vão se desenrolado por camadas e várias ideias e reflexões por trás, ela vem com elementos que você muitas vezes já possui pré-concebidos em sua mente.
Você vê uma cadeira e entende que aquilo é uma cadeira. Ela foi pintada nas formas de uma cadeira, e é, sobretudo, isso que ela representa. A partir do seu reconhecimento daquele objeto cadeira, os pensamentos sobre a imagem da cadeira representada vão sendo divagados e construídos. Até mesmo se for o caso da própria des-construção do que é o elemento cadeira.
Muitas vezes, entender logo de cara o que a gente tá vendo, mesmo que não seja a ideia geral, nos conecta de pronto, somos mais facilmente atraídos para este tipo de imagem, e nos reconhecemos nelas. Elas “fazem sentido”.
Na arte abstrata a história muda um pouco. O fazer e muitas vezes a a intenção são diferentes. A arte abstrata e figurativa, em alguns casos, pode até querer provocar a mesma sensação ou sentimento, mas a abordagem para se chegar lá são diferentes.
Vejamos só:
Primeiro, temos uma pintura que representa uma pessoa em pé, a poucos passos de um penhasco, olhando para o horizonte em que o céu estrelado se confunde com a imensidão profunda do abismo a sua frente. Das mais possíveis interpretações, uma que consigo fazer se refere à minha pequenez diante do universo, de sua beleza e de seus desafios.
Agora vamos pensar num quadro de Mark Rothko, um pintor da escola expressionista abstrata de nova Iorque do pós-guerra. Os quadros que Rothko utiliza em suas pinturas eram enormes, e através de finas camadas, pintadas com uma sutileza ímpar, ele preenchia seus “campos de cores”, que seriam muitas vezes retângulos e quadrados pintados com poucas ou uma só cor.
A intenção de Rothko também tinha um caráter transcendente. Ele também queria causar uma intenção espiritual no espectador, como ele próprio já comentou em entrevistas.
Apesar de nunca ter estado na presenta física de uma de suas obras, eu consigo sentir essa intenção, como também já ouvi muitos relatos, em vídeos, livros e documentários de pessoas que realmente sentiram algo especial e profundo ao estar de frente, em contemplação a um Rothko.
Mas este não é o limite da arte abstrata.
Muitas vezes, a primeira coisa que as pessoas fazem quando olham para uma obra de arte abstrata é tentar imaginar figuras e formas representáveis para que, com as peças que elas reconheceram, juntar os pedaços e montar uma história.
Não que isso esteja errado, isso é incrível. Inclusive isso é um exercício excelente de criatividade e imaginação. Sem falar que te conecta a uma obra de arte, te faz contemplá-la, e desenvolve a sua sensibilidade perceptiva.
Contudo, a arte abstrata pode suscitar outros aspectos, percepções, sensações e sentimentos tanto em quem contempla, quanto em quem está criando.
A primeira vez que experimentei pintar novamente, agora já adulto, foi quando eu conheci a arte abstrata. Pois antes eu me julgava um mal pintor (ora ora nunca tinha pintado antes) e achava que tinha que pintar algo que eu conseguisse representar, como o rosto de alguém (super fácil para um iniciante).
Só consegui eliminar essa grande barreira autoimposta por mim quando eu percebi que simplesmente poderia interagir com as tintas e a tela sem necessariamente criar uma figura específica.
As formas e as texturas que eram produzidas sob os largos e intensos movimentos dos meus braços em direção a tela já seriam as marcas do resultado final da obra que chegavam junto à leveza no meu corpo e na minha mente, diante de um episódio de catarse despejado sobre a forma de pintura.
Sim, meu primeiro trabalho abstrato surgiu quando eu precisei desabafar de muita coisa que eu nem concebia nem queria colocar em palavras. Foi quando eu precisei me expressar de maneira tal que não precisasse pensar, refletir. Eu só queria criar e direcionar todo aquele sentimento para alguma coisa, e nem isso precisava fazer sentido.
Mas fez. Algo de intrigante e estimulante estava presente na minha prática da arte abstrata. Eu continuei a pintar algumas telas sobre a égide de liberar meus sentimentos e emoções, na tentativa de me entregar a expressão, tirar de dentro do peito e compreender melhor tudo que tava acontecendo.
Eu enfim tinha entrado em contato com a pintura, novas portas tinham sido abertas e eu não sabia o que esperar de tudo aquilo, mas estava ansioso para descobrir.
A curiosidade começou a aumentar dentro de mim. Eu tinha certeza de que a arte abstrata não era só jogar tinta aleatoriamente em tela, era também, mas não podia ser só isso. Quando eu comecei a estudar eu via que existiam obras abstratas que tocavam lugares realmente profundos e na minha cabeça tinha que existir algo a mais pra isso acontecer.
E existia. A arte abstrata tinha percorrido caminhos maiores, navegado por muitas águas, viajado por muitos ares. Já parou pra pensar que as músicas que saem apenas dos instrumentos são puramente abstratas e podem nos tocar até arrepiar os pelos?
Abstrair é tentar não representar algo, mas capturar essências, provocar sensações, ressoar quebra-cabeças e reflexões não racionalizadas em nossa mente. Abstração é abrir novos campos do/de sentido, é explorar subjetividades, expressar emoções, ideias e inquietações a partir de maneiras de fazer arte que não prescindem de objetos reconhecíveis.
Eu não sabia, mas os artistas abstratos pensavam muito também sobre composição, perspectiva, teoria da cor. Além disso eles pensavam também sobre aspectos originários e fundamentais dos materiais que usavam.
Sobre as qualidades físicas e (al)químicas das tintas, das telas, da madeira, do metal, dos pinceis, das espátulas e sobre quais as formas, texturas e matizes poderiam ser obtidos em consequência. Pensavam também sobre novas maneiras de usar estes mesmos materiais e sobre o uso de outros também.
Pensavam sobre peso, movimento, ritmo e unidade. Sobre o áspero e o aveludado, sobre o rígido e o macio, sobre o tensionado e o frouxo. Sobre simetria e desequilíbrio. Pensavam sobre o uso do próprio corpo, e não só das mãos. Pensavam sobre inconsciente e sobre intuição.
Neste ponto eu já compreendia um pouco mais sobre fazer artístico, e o meu ofício tinha mudado completamente. E eu passei a prestar mais atenção em quais materiais mais me atraíam e agradavam, e por quê. Passei também a observar mais atentamente o mundo ao meu redor.
Ao olhar atentamente a cidade, re-descobri o graffiti e o universo tomou novas direções.
A pintura em tela poderia assumir outras formas e escalas, e qualquer estrutura era passível de ser um novo suporte. Além dos pinceis, existiam os sprays, rolinhos, marcadores, borrifadores, stencils e diversas outras maneiras de aplicar a pintura.
A filosofia do graffiti estava alinhada com a filosofia da arte abstrata, pelo menos na minha cabeça, e meu cérebro explodiu.
Prestar atenção com curiosidade me fez refletir e enxergar conexões entre o meu universo interior e exterior que, a priori, não estavam tão disponíveis assim.
No interior, um ansioso que reflete intensamente sobre sua própria existência no mundo. No exterior, um habitante da cidade. E a cidade como um local de encontros, confrontos e solidão.
As marcas da cidade passaram a ser as marcas da nossa existência. Os contrastes passaram a ser sinais das nossas próprias contradições interiores.
O cinza e o colorido, o bruto e o sensível, o novo e o desgastado, o pronto e o inacabado, o limpo e o poluído, o natural e o artificial, o corpo e o espaço, a permanência e a efemeridade e a dominação e a exclusão sinalizam as complexidades da condição humana, e são a partir delas que faço minhas reflexões sobre como crio e sou transformado por tudo isso.
Essas percepções estéticas e filosóficas só tiveram a possibilidade de se aflorar em mim graças ao universo da arte abstrata, da não-representação, ou como diria Kandinsky, da arte “concreta” que intenciona a perceber as raízes, as essências, o fundamental, o originário das coisas, através de uma leitura sensível do mundo interior e exterior.
Mas este ainda não é o limite da arte abstrata.
E a pergunta fundamental não seria sobre quais os limites ou se encontraríamos algum, mas sim, como posso aproveitar as possibilidades que só são possíveis através dela para expressar minhas percepções?
Para o artista que vos escreve, uma grande importância do fazer artístico está no processo, nos estudos, nas observações, no corpo produzindo arte, no toque aos materiais, no poder da intuição, no poder da criação.
Para o espectador, se te posso sugerir, o importante sobre o fazer artístico, ou melhor, sobre o ofício do artista, está na contemplação, no se permitir passar um tempo diante de uma obra de arte abstrata e deixar-se levar pelas sensações físicas e psicológicas que são experimentadas.
Você pode se surpreender com o que pode surgir.
“Me sinto perdido”, “me sinto nostálgico”, “me sinto conectado”. "Me sinto pleno."
Além disso, de uma maneira geral, você sempre pode se perguntar algumas coisas para aguçar ainda mais sua percepção:
“O que estou sentindo nesse momento?”, “Algo nessa obra me incomoda ou me desafia?”, “O que me chamou a atenção logo de cara?”, “Sinto calma ou agitação?”, “Há algo familiar nela?”, “Que memórias ou pensamentos essa obra me desperta?”
Perguntar verdadeiramente e permitir-se ouvir é um exercício profundo de vulnerabilidade e autoconsciência e pode levar você a lugares inimagináveis. Permita-se.
Este não foi um texto tentando explicar definitivamente, ou exaurir tudo que penso sobre a arte abstrata, mas foi uma maneira de dar o primeiro passo, para iniciar o diálogo sobre este campo que é uma grande influência não só para mim, como para a história, filosofia, psicologia e o universo da arte.
Espero que vocês tenham gostado! Por favor, comentem comigo suas impressões e dúvidas, que estou a total disposição. Quais temas vocês queriam que escrevesse mais? O que vocês gostariam que eu aprofundasse?
Um forte abraço. Com amor e cuidado, Matheus Souto.